domingo, 13 de novembro de 2011

Recuperar o sentido das coisas – ou do porquê eu estudo

Quando decidi estudar história não tinha muita ideia de como era a profissão do historiador, nem de como era o curso, e nem do que significava fazer pesquisa, ser historiadora no Brasil, e como isso implicava um milhão de outras coisas como políticas acadêmicas nacionais e internacionais, linhas de pesquisa e "linhagens" teóricas, relações de colonialidade, assimetrias de poder entre as distintas academias do mundo e seus respectivos "modos de pensar" esse mesmo mundo, pensar uma sociedade por meio da reflexão sobre seu passado...

Na verdade, julgando hoje a maneira como eu pensava na época, e a desinformação na qual eu estava mergulhada tendo a dizer que escolhi errado o meu curso e a minha profissão. Não porque eu não gosto e não me identifico com o que eu estudei e com o que faço hoje, mas porque eu achava, na época, que historiadores lidam com determinadas questões de uma determinada maneira que eram, na verdade, objetos e métodos de outras ciências, como antropologia ou mesmo sociologia. Lidei com essas perguntas de maneira prática, quase que tirando no palitinho ou nas cartas. Não havendo quem pudesse explicar melhor o que os manuais diziam sobre as diferenças de currículos dos cursos, ou mesmo entre as próprias disciplinas, optei por estudar algo que estivesse incluído no currículo da escola publica, já que isso significava que eu sempre teria onde trabalhar, enquanto que, se tivesse escolhido outro curso, eu não teria nem idéia de onde pedir emprego. Mal sabia eu que, do ponto de vista das ofertas do mercado de trabalho, historiadores, antropólogos e sociólogos estão quase que todos no mesmo barco furado no Brasil...

Além disso, houve também uma outra escolha anterior a essa, que foi a de não estudar artes. Isso era algo que eu queria de maneira febril, porém também silenciosa. Ao mesmo tempo que queria, tinha muito medo de estudar artes, ou melhor dizendo, artes dramáticas. A educação que recebi na minha família, nesse sentido e do ponto de vista dos meus pais, foi bastante eficiente, pois mantendo-me na ignorância das possibilidades profissionais oferecidas pelo curso, conseguiu que eu mesma me impusesse proibições e barreiras, e por fim desistisse, sob a desculpa – hoje eu vejo -, de que não teria como me bancar sozinha. Obviamente estava claro para mim que caso optasse por "essa vida", não seria nem moralmente apoiada pela minha família ("isso é coisa perigosa pra mulheres jovens de família", "atrizes são todas mulheres faladas, porque dizer que é atriz é fachada pra outras coisas", "você não tem olhos azuis, e nem é loira. se contente com fazer teatro na escola, porque você não chegaria a nenhum lugar com isso"...), que simplesmente não concebe dramaturgia como profissão, principalmente para "donzelas" de família inocentes do interior que devem casar-se, ser mães e esposas exemplares, e nunca comprometer o desempenho desses papéis ocupando-se com outras atividades que não contribuam para a realização desse mesmo desempenho.

Continuando... A única certeza que eu tinha sobre tudo isso na época, e que por sorte não foi frustrada e nem destruída, é que os historiadores eram daqueles tipos de pessoas que trabalhavam com questões políticas e sociais, e que se movimentavam em terrenos alagados de engajamento. Eu interpretava isso como uma possibilidade de subverter e reverter coisas que eu ainda não conseguia nomear com todas as letras, mas que já era capaz de identificar e, em alguns casos, sentir na pele. De alguma maneira eu relacionava o potencial de pensar e realizar mudanças como um dos papéis que eu associava às artes, que era com o que eu havia me proibido de sonhar naquele momento, mas também das ciências humanas, a opção restauradora do potencial de transformação que eu queria para minha vida.

Me dei conta logo em seguida do início do curso de história de que já a decisão de estudar ciências humanas é, no Brasil, uma decisão absurdamente política, e engajada. Começando pelo fato de que ninguém fica rico com isso – e essa é uma das "leis" da sociedade ocidental contemporânea: ter sucesso no trabalho, o que significa ganhar muito bem pelo que faz. Mas principalmente no Brasil, onde o silêncio, o esquecimento e a despolitização da memória são as bases dos estandartes dos valores e fatos que separam e legitimam muito bem o abismo entre ricos e pobres, brancos e negros, patrões e empregados, mulheres e homens, homos e heteros, etc etc, a suposta simples decisão de estudar e ensinar história (e nem digo pesquisar!) já se transforma em uma decisão absolutamente transformadora, porque pode implicar, entre milhões de outras coisas, pensar, enxergar, escutar e falar contra a corrente, ou como bem escreveu Walter Benjamin, ter como tarefa "pentear a História a contrapelo” (tese VII).

O que eu queria nesse post era recuperar esse sentido, pra mim mesma, do porquê eu estudei história, mas principalmente do porquê eu continuo estudando ciências humanas, e do porquê estou voltando timidamente a sonhar com estudar artes. Como uma vez me disse Karim Ainouz, o diretor do filme Madame Satã, o mundo precisa de bons médicos, bons dentistas, bons engenheiros, bons advogados, bons astronautas. Mas prescinde de qualquer cineasta, ator, palhaço, malabarista ou sonhador. Eu estendo: o mundo também prescinde de filósofos, cientistas sociais, historiadores. A desgraça da África incomoda a muito pouca gente no mundo, e incomoda menos que as desgraças individuais e cotidianas. Eu me enfiei nas ciências humanas porque em algum momento da vida criei o hábito torto de pensar que posso dominar o mundo com o olhar, e que projetando por meio dele minhas inquietações, sou capaz de deformar a realidade que vejo, nem que seja só um pouquinho. Eu estudo por mim, em nome de uma ilusão antiga, que criei do alto da minha ignorância, de que a partir destes lugares que ocupo e que almejo posso subverter. Mas o cineasta tem razão. O mundo não precisa de nós.