domingo, 25 de março de 2012

Novo Código Penal, Aborto e Igualdade


Bem, como muitos já sabem, existe um projeto de novo Código Penal sendo discutido, e logo mais saindo do forno. É um momento crucial de discussão importante para distintas parcelas da sociedade, interessadas na reformulação de partes dele ou mesmo do código inteiro. Eu como feminista brasuca temporariamente exilada tenho acompanhado as discussões que estão surgindo em torno da questão do aborto por meio das redes sociais, da internet, de blogs de companheirxs feministas, comunidades digitais, coletivos de blogueirxs e do mínimo que sai nos jornais sobre o tema.

O ponto forte da discussão ainda não é a despenalização propriamente dita do aborto, mas os casos em que este não será punido: aborto em caso de feto anencéfalo ou portador de doenças físicas ou mentais graves, e também por decisão da mulher antes das décima segunda semana, caso seja comprovado a partir da avaliação de um profissional da saúde que a mulher não tem condições psicológicas ou físicas de arcar com a maternidade. Como se nota, não estamos ainda diante da despenalização do aborto, mas diante da possibilidade de o código prever a autorização judicial para o aborto a algumas mulheres e em casos restritos.

Por um lado, se estes novos pontos são aprovados e incluídos no novo Código Penal, estamos dando um passo positivo e muito importante para evitar o sofrimento de mulheres e de famílias inteiras, não se pode negar. Por outro lado, é preciso lutar para que esse novo código incorpore a premissa de que as mulheres é que devem decidir sobre seus corpos. Me explico: tanto no caso de aborto por doenças e mal-formações graves do feto quanto no caso de que a mulher seja declarada incapaz por médico ou psicólogo, estamos diante de casos em que a mulher não tem o direito de decidir sobre seu corpo. A mulher continua submetida ao poder de decisão de terceiros, tendo que se submeter a exames e provas de médicos e da justiça, tornando-se, ao meu ver, uma vítima deste processo de sucessivas intervenções. Além disso, e já considerando as imensas desigualdades sociais e raciais que caracterizam não só o sistema judiciário como também o complexo sistema de saúde no Brasil, é fácil imaginar de antemão que a intervenção da medicina e da justiça nos casos de aborto pode funcionar como nova fonte de privilégios e privilegiadxs. 

Todos sabemos que a prática do aborto é uma realidade concreta no Brasil e no mundo, independente das condições de legalidade, entre todos os tipos de mulheres, de distintas classes, camadas, etnias, religiões, estados civis etc. A questão é que, devido à proibição do aborto no Brasil, mulheres com melhores condições materiais realizam abortos clandestinos em melhores condições, podem pagar por profissionais de saúde especializados e submeter-se ao procedimento em uma clínica limpa, com o apoio necessário, os remédios, assistência e sigilo absoluto. Mulheres pobres e que pagam pouco realizam abortos sem as devidas condições e apoio, em lugares que nada tem a ver com clínicas, na melhor das opções. Em casos tão extremos quanto reais e frequentes, porém, o aborto é realizado com a utilização de aparelhos inadequados, como utensílios domésticos ou drogas caseiras, feitos por pessoas sem nenhuma qualificação profissional na área de saúde, correndo sérios riscos, muitas vezes adquirindo doenças, sofrendo mutilações, e quando não morrem na hora ou depois, são denunciadas e podem ser condenadas e presas.

Com esse quadro em mente, se nota que despenalizar o aborto é apenas um primeiro passo. É preciso oferecer condições de igualdade entre as mulheres, para que tenham pleno direito ao seu corpo, a decidir sobre ele. Nos casos de aborto por doenças do feto ou incapacidade da mulher, é necessário defender a agilização e a desoneração dos processos de decisão pelo aborto. Defender o máximo possível a decisão da mulher sobre a dos médicos, independizar a mulher da autoridade de terceiros, também possibilitando condições para o aborto seguro e o apoio garantido e disponível no SUS.


Caso se interesse pelo tema e pela discussão, aí vão alguns links de textos afins:

-Alex Rodrigues: http://alexrnbr.wordpress.com/2012/03/11/direito-ao-aborto-passos-a-frente-mas-nao-muito/

sábado, 24 de março de 2012

Argentina despenaliza aborto em caso de estupro


Para começar a minha série de posts sobre o aborto, direitos sexuais das mulheres e direito ao próprio corpo quero falar do que aconteceu aqui na Argentina esta semana: foi descriminalizado o aborto em todo o país em caso de estupro e sem que se faça necessária a intervenção da justiça ou de parecer médico. De acordo com o novo código, nem mesmo uma denúncia de estupro é necessária para que a mulher possa abortar, muito menos a autorização de um juiz. A única condição é uma declaração jurada da vítima ou de seus responsáveis de que se trata do fruto de um estupro, e assim se realiza o procedimento. Quero contar esse caso porque acho que esse exercício de pensar e criticar a novidade pode sempre ajudar-nos a entender o caso brasileiro, além de que uma mulher pode engravidar em qualquer lugar mas os seus direitos o respeito a eles variam de acordo com o país ou lugar onde você se encontra.

Como sempre, a decisão de autorizar o aborto em caso de estupro apenas com a declaração jurada da mulher é um passo importante em direção ao aborto descriminalizado plenamente. Embora essa decisão ainda não dê pleno direito a qualquer mulher de decidir sobre manter ou interromper um processo drástico em seu próprio corpo e sua própria vida, está posta, neste caso, uma premissa importante que no Brasil, por exemplo, só vemos contemplada nas reivindicações de movimentos feministas: a de que a justiça e a medicina não podem e não devem intervir nem na decisão da mulher e nem na culpabilização da mulher pelo estupro sofrido. A palavra da mulher formalizada numa declaração jurada em casos de aborto de estupro basta como testemunho da violência sofrida, e ninguém pode se antepôr a isso, segundo o caso argentino.

A nova determinação da justiça também prevê o direito de médicos e profissionais da saúde que não aceitem, por questões religiosas ou ideológicas, por exemplo, realizar um aborto numa paciente. A eles lhes é garantido o direito de negar-se a isso, e muitos hospitais já estão inclusive divulgando listas de médicos que não o fazem. Algo meio contraditório e por isso mesmo complicado, pois de um lado se argumenta em favor do direito de decidir da mulher e de outro pelo do médico.

Fiquei pensando no caso de localidades pequenas onde exista apenas um hospital público cujos médicos em sua totalidade se neguem a realizar abortos. Aí complica, porque se trata da negativa do Estado por meio de seus agentes a realizar o cumprimento de uma lei e um direito da mulher. Não sei ainda como a nova lei se posicionaria diante destas situações, e fiquei ainda pensando em alguns embates similares, por exemplo o de médicos religiosos cuja religião proíbe seus fiéis de fazer transfusões ou doar seu sangue (esta NÃO é uma situação hipotética, tais religiões existem e contam com muitos fiéis no Brasil). O que aconteceria se, no meio de uma cirurgia num hospital público, o médico adepto de tal religião se negasse a realizar a transfusão de sangue em um paciente que a necessite, sob o risco de morte deste, porque transfusões de sangue são proibidas na religião do médico?

Outro embate que serve como contrapartida interessante é o caso de policiais cristãos (agentes do estado assim como muitos médicos) que matam em serviço. Como se sabe as religiões cristãs têm como dogma ou preceito básico os dez mandamentos de deus presentes na bíblia. O quinto desses mandamentos (o mesmo que é utilizado como base de argumentação contra o aborto e supostamente em defesa da vida da qual estas religiões e seus fiéis são os porta-vozes) é o inviolável „Não Matarás“. No mesmo raciocínio, segundo a bíblia a idéia deste mandamento é complementada pela recomendação de não agir em legítima defesa: „se te esbofeteiam na face, oferecerás também a outra“. O fato é que eu nunca vi nenhum desses policiais que mataram por „exigência da profissão“ (coisa que pra mim não existe, mas que é um artifício muito usado) serem excomungados ou ainda serem liberados pelo Estado e pela corporação das funções profissionais que o „obrigariam“ a tomar decisões drásticas – como a de apertar o gatilho -, em defesa de um colega, de uma suposta vítima ou ainda de si mesmo ou de ninguém. Realmente a questão do médico se negar a realizar um aborto legal é pra se pensar...

Outro aspecto importante dessa nova decisão na Argentina, é a de que se os procedimentos são feitos de acordo com a lei, se evita a revitimização. Sim, porque em primeiro lugar se considera os dados que mostram que a maioria dos estupros de crianças e de incapazes é perpetrada por indivíduos do círculo familiar ou de convívio próximo das vítimas, como vizinhos, padrastos, tios, primos e até mesmo pais. Considerando a complexidade das constelações familiares e a problemática das relações em que a vítima está inserida – muitas vezes sendo exposta à violência sexual de maneira já prolongada e constante -, pode acontecer que a denúncia do estuprador provoque represálias deste em relação à vítima ou até mesmo o seu assassinato imediato, ou seja, a sua revitimização. Pensando que o direito ao aborto não pode de maneira alguma ser condicionado a procedimentos que, embora não o objetivem, podem provocar a revitimização, esta lei não obriga a vítima a oferecer provas contra seu estuprador e nem provas do estupro, mesmo porque este pode anteceder o pedido de aborto em muitas semanas.

O argumento de evitar a revitimização é um dos que eu acho essenciais para reafirmar e defender o direito ao aborto no Brasil. Temos uma situação social concreta em que aborto em caso de estupro comprovado é legalizado, mas que por outro lado mulheres e crianças vítimas de estupro são submetidas todos os dias a exames de corpo de delito invasivos muito tempo depois da violência sofrida. Procedimentos desencorajadores, violência institucional extrema, medo de represálias, e questionamento de sua integridade física e moral pelos que deveriam defendê-las. Inúmeras mulheres e crianças acabam voltando a ser vítimas de estupro e violências maiores porque além de terem que denunciar seus estupradores não têm garantia de que serão protegidas pelo estado e menos ainda de que os abortos serão realizados em tempo hábil. Há de defender-se o direito ao aborto incondicionado, mas até lá devemos lutar para que o sistema existente não vitimize duplamente as vítimas de estupro e condicione o direito conquistado. 

Série de posts sobre o direito ao corpo, à sexualidade livre e ao aborto


Uiiiii, feliz ano já não tão novo! Tanto tempo sem publicar nada, embora assuntos e vontade não tivessem faltado. Tenho uma lista imensa de posts pela metade, que minhas mudanças de continente e de país nos últimos dois meses e meio me impossibilitaram de terminar, ou me fizeram perder o ânimo, a vontade ou mesmo o time, como foi o caso de diversas blogagens coletivas importantes que perdi, como a do dia internacional das mulheres, organizada pelxs companheirxs do Blogueiras Feministas. Nesse meio tempo uma cirurgia da mamis me obrigou a uma estadia prolongada na casa dos meus pais, em seguida país novo, casa nova, e trabalho, trabalho e mais trabalho. Chega de desculpas, agora quero deslanchar!

E para isso, quero abrir uma série de posts de conteúdo altamente feminista - para os desavisados - e sobre um assunto sério, que está sendo bastante discutido não só no Brasil nesse momento, mas também em diversos lugares do mundo, entre eles os Estados Unidos pré-eleições e a Argentina kirchnerista (onde me encontro): o aborto, e como não poderia deixar de ser, direitos sexuais femininos e direito ao corpo. Nesta série quero tentar contribuir à minha maneira e mesmo que não chegue tão longe com minhas idéias e opiniões para esta discussão que deveria ser generalizada, mas que não é. Não é porque não chega à maioria das pessoas e principalmente às mulheres, mais afetadas pelo assunto, porém imobilizadas pela falta das condições mínimas de informar-se, posicionar-se e ter sua voz ouvida. 

Bem, se você chegou até aqui (e esse blog deveria se chamar "o fim do mundo" ou, "onde o Judas perdeu as botas" ou ainda, "onde o vento faz a curva"...hehehe) espero que opine, me critique, comente, ou que pelo menos saia com uma pergunta na cabeça ou com a vontade de voltar a discutir. Até mais ler!