sábado, 24 de março de 2012

Argentina despenaliza aborto em caso de estupro


Para começar a minha série de posts sobre o aborto, direitos sexuais das mulheres e direito ao próprio corpo quero falar do que aconteceu aqui na Argentina esta semana: foi descriminalizado o aborto em todo o país em caso de estupro e sem que se faça necessária a intervenção da justiça ou de parecer médico. De acordo com o novo código, nem mesmo uma denúncia de estupro é necessária para que a mulher possa abortar, muito menos a autorização de um juiz. A única condição é uma declaração jurada da vítima ou de seus responsáveis de que se trata do fruto de um estupro, e assim se realiza o procedimento. Quero contar esse caso porque acho que esse exercício de pensar e criticar a novidade pode sempre ajudar-nos a entender o caso brasileiro, além de que uma mulher pode engravidar em qualquer lugar mas os seus direitos o respeito a eles variam de acordo com o país ou lugar onde você se encontra.

Como sempre, a decisão de autorizar o aborto em caso de estupro apenas com a declaração jurada da mulher é um passo importante em direção ao aborto descriminalizado plenamente. Embora essa decisão ainda não dê pleno direito a qualquer mulher de decidir sobre manter ou interromper um processo drástico em seu próprio corpo e sua própria vida, está posta, neste caso, uma premissa importante que no Brasil, por exemplo, só vemos contemplada nas reivindicações de movimentos feministas: a de que a justiça e a medicina não podem e não devem intervir nem na decisão da mulher e nem na culpabilização da mulher pelo estupro sofrido. A palavra da mulher formalizada numa declaração jurada em casos de aborto de estupro basta como testemunho da violência sofrida, e ninguém pode se antepôr a isso, segundo o caso argentino.

A nova determinação da justiça também prevê o direito de médicos e profissionais da saúde que não aceitem, por questões religiosas ou ideológicas, por exemplo, realizar um aborto numa paciente. A eles lhes é garantido o direito de negar-se a isso, e muitos hospitais já estão inclusive divulgando listas de médicos que não o fazem. Algo meio contraditório e por isso mesmo complicado, pois de um lado se argumenta em favor do direito de decidir da mulher e de outro pelo do médico.

Fiquei pensando no caso de localidades pequenas onde exista apenas um hospital público cujos médicos em sua totalidade se neguem a realizar abortos. Aí complica, porque se trata da negativa do Estado por meio de seus agentes a realizar o cumprimento de uma lei e um direito da mulher. Não sei ainda como a nova lei se posicionaria diante destas situações, e fiquei ainda pensando em alguns embates similares, por exemplo o de médicos religiosos cuja religião proíbe seus fiéis de fazer transfusões ou doar seu sangue (esta NÃO é uma situação hipotética, tais religiões existem e contam com muitos fiéis no Brasil). O que aconteceria se, no meio de uma cirurgia num hospital público, o médico adepto de tal religião se negasse a realizar a transfusão de sangue em um paciente que a necessite, sob o risco de morte deste, porque transfusões de sangue são proibidas na religião do médico?

Outro embate que serve como contrapartida interessante é o caso de policiais cristãos (agentes do estado assim como muitos médicos) que matam em serviço. Como se sabe as religiões cristãs têm como dogma ou preceito básico os dez mandamentos de deus presentes na bíblia. O quinto desses mandamentos (o mesmo que é utilizado como base de argumentação contra o aborto e supostamente em defesa da vida da qual estas religiões e seus fiéis são os porta-vozes) é o inviolável „Não Matarás“. No mesmo raciocínio, segundo a bíblia a idéia deste mandamento é complementada pela recomendação de não agir em legítima defesa: „se te esbofeteiam na face, oferecerás também a outra“. O fato é que eu nunca vi nenhum desses policiais que mataram por „exigência da profissão“ (coisa que pra mim não existe, mas que é um artifício muito usado) serem excomungados ou ainda serem liberados pelo Estado e pela corporação das funções profissionais que o „obrigariam“ a tomar decisões drásticas – como a de apertar o gatilho -, em defesa de um colega, de uma suposta vítima ou ainda de si mesmo ou de ninguém. Realmente a questão do médico se negar a realizar um aborto legal é pra se pensar...

Outro aspecto importante dessa nova decisão na Argentina, é a de que se os procedimentos são feitos de acordo com a lei, se evita a revitimização. Sim, porque em primeiro lugar se considera os dados que mostram que a maioria dos estupros de crianças e de incapazes é perpetrada por indivíduos do círculo familiar ou de convívio próximo das vítimas, como vizinhos, padrastos, tios, primos e até mesmo pais. Considerando a complexidade das constelações familiares e a problemática das relações em que a vítima está inserida – muitas vezes sendo exposta à violência sexual de maneira já prolongada e constante -, pode acontecer que a denúncia do estuprador provoque represálias deste em relação à vítima ou até mesmo o seu assassinato imediato, ou seja, a sua revitimização. Pensando que o direito ao aborto não pode de maneira alguma ser condicionado a procedimentos que, embora não o objetivem, podem provocar a revitimização, esta lei não obriga a vítima a oferecer provas contra seu estuprador e nem provas do estupro, mesmo porque este pode anteceder o pedido de aborto em muitas semanas.

O argumento de evitar a revitimização é um dos que eu acho essenciais para reafirmar e defender o direito ao aborto no Brasil. Temos uma situação social concreta em que aborto em caso de estupro comprovado é legalizado, mas que por outro lado mulheres e crianças vítimas de estupro são submetidas todos os dias a exames de corpo de delito invasivos muito tempo depois da violência sofrida. Procedimentos desencorajadores, violência institucional extrema, medo de represálias, e questionamento de sua integridade física e moral pelos que deveriam defendê-las. Inúmeras mulheres e crianças acabam voltando a ser vítimas de estupro e violências maiores porque além de terem que denunciar seus estupradores não têm garantia de que serão protegidas pelo estado e menos ainda de que os abortos serão realizados em tempo hábil. Há de defender-se o direito ao aborto incondicionado, mas até lá devemos lutar para que o sistema existente não vitimize duplamente as vítimas de estupro e condicione o direito conquistado. 

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