quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Solidão e saudade

Depois dos meses de maior pindaíba da história da minha vida, o amor voltou para o novo continente, porque a gente tá pobre mas não acredita em fracasso antes dos 100 anos! ehehe. Há uma semana tenho o apartamento todinho a self-service. Para minsinha só. Fazia tempo que não ficava tantos dias aos cuidados e sob a atenção exclusiva de mim mesma. Desde a época de faculdade, quando meus amigos viajavam pra casa em feriado prolongado e eu sobrava a la "jiló na janta".

Na primeira noite, desmaiei de cansaço para acordar depois de dez minutos. Esperei em vão que se apagassem sozinhas as luzes da cozinha, e que o vento parasse de empurrar o frio para dentro de minha janela, caprichosamente esquecida escancarada por mim mesma. Me restou levantar da cama, por ordem no barraco e depois lamentar com o abajur a falta de sono, embora o cansaço jorrasse aos baldes. No segundo dia resgatei o hábito e a prudência de fechar a porta de casa com chave ao sair: para não esquecer aberto; para não me esquecer pra fora; mas principalmente porque não tem graça provocar tragédias como essas sem ter em quem por a culpa ou pra quem chorar o leite derramado.  

Sempre soube que gosto de ficar sozinha. Começo a desfrutar da solidão arrumando as bagunças, movimentando objetos e dispondo-os à minha maneira, ocupando espaços que estavam a serviço de outros ou da coletividade. Domino a poltrona cativa de Fulano, ocupo a escrivaninha perto da janela do Beltrano, como no prato raso branco preferido do Ciclano. Tomo um banho preguiçoso de banheira, e o despertador racha aos gritos de manhã, sem que ninguém venha me provocar maiores transtornos. 

Os primeiros dias de solidão são realmente ultra produtivos: casa limpa, durmo cedo, como só o suficiente e muita salada, pouca bagunça, estudo e leio muito em relação aos dias anteriores. Parece que a ansiedade ativa a responsabilidade e a produtividade. Lance louco, mas misteriosamente dá tempo pra tudo, e quando chega a noite me pergunto que é que foi que eu esqueci - afinal, que maluco de repente tanta eficiencia...

Lá pelo décimo dia eu volto a mim. Avacalho de novo, já abandono uns pratos na pia, espalho de novo a roupa pela casa, perco tempo com coisas desimportantes, desregulo o sono. Faço sérias DRs na presença implacável das almofadas e cortinas, e tomo de resposta o eco da minha voz, reverberando histérica. Eis que sinto a diferença entre estar sozinha e morar sozinha. E disso eu não gosto. Talvez por não ter tido tempo e dinheiro suficientes para bancar a experiência, talvez porque eu realmente precise de uma dose diária de conflito pra por a vida em equilibrio... 

Venho de uma família de cinco pessoas, que sempre morou em casa pequena, e eu sempre fui a que sempre dividiu quarto, guarda-roupa, bicicleta. Depois e já na universidade, vivi rodeada de muitas pessoas, desde dividindo quarto com mais um e apê com mais três ou quatro, até dividindo quarto com dez pessoas e o alojs com mais 70. Sem mentira! 

Conflitos e desavenças, por hora, à parte, tive sorte de sempre encontrar nos outros um pedacinho de lar. Um dos momentos em que eu mais me sinto em casa, é quando eu chego a noite e tem alguém pra escutar como foi o dia, ou pra contar do trem que quebrou, do bafo do chefe no seu cangote, de uma nova estratégia para conquistar o mundo a partir do buteco da esquina. Nessas épocas tinha até companheiros de insônia, pra passar as madrugadas de inverno enrolados em cobertor e sentados no chão dos corredores, estudando para uma prova, ou simplesmente passando o tempo. 

Terminamos nossos cursos, uns se casaram, outros continuam estudando mas se mudaram de casa, outros foram morar com novos e menos amigos, ou com seus companheiros e em outros lados, como é o meu caso (espero que por tempo determinado e breve!). O imbatível de morar junto agora é chegar e comer comida do amor feita depressinha, feita pra mim com pitadinhas de safadeza e cenourinha ralada. Assistir um filminho, ou nem isso. Comer em silêncio mesmo, dividindo a fome, trocando olhares delatores e sorrisinhos cúmplices, e completar-se de conchinha nem que seja pra ameaçar guerra nuclear em cinco minutos. 

Mas a ausência de uns faz aparecer as lembranças de todos. Em dias como hoje, quando já começa a aproximar-se o décimo dia de solidão, olho para as fotos amassadas de viajar em mala, e escuto os ecos de todas as nossas risadas, de todos os amigos e pessoas com quem compartilhei-me. Sinto o cheiro da pizza cadalora metade frango e metade quatro queijos misturado ao odor-de-verde tão característico dos corredores do bloco F. Estico o pescoço pra ver se observo algum traço, na parede da memória, do nosso monstro da louça suja, de sete cabeças que cobravam direitos de propriedade intelectual. Pergunto quanto tempo faz, quanto tempo levou pra que nós nos tornássemos, cada um dos muitos, uma das metades da única laranja. Não é da data que preciso, ao final.

Pronuncio os palavrões que a gente inventada, quando percebo que os passos na escada passaram reto pela minha porta. Viro em direção à parede amarelo-ocre bicolor:  onde ficava mesmo essa estante, quando nós chegamos aqui? Na confusão de arrumar volta e mudança, me dou conta de que não terminei de pintar os rodapés da sala de branco! O amor não sobrevive a rodapés imundos, diz o contrato da imobiliária. Não faz mal. Bora amanhã comprar tinta de novo, e pintar de branco no branco. Curtir a solidão como quem desenha no rio da memória a vitória das naus, para aqueles que vêem em tudo o que lá não está. Bora acordar! Daqui há pouco já será meia noite, você tem que ir dormir.