Para
começar a minha série de posts sobre o aborto, direitos sexuais das
mulheres e direito ao próprio corpo quero falar do que aconteceu
aqui na Argentina esta semana: foi descriminalizado o aborto em todo
o país em caso de estupro e sem que se faça necessária a
intervenção da justiça ou de parecer médico. De acordo com o novo
código, nem mesmo uma denúncia de estupro é necessária para que a
mulher possa abortar, muito menos a autorização de um juiz. A única
condição é uma declaração jurada da vítima ou de seus
responsáveis de que se trata do fruto de um estupro, e assim se
realiza o procedimento. Quero contar esse caso porque acho que esse
exercício de pensar e criticar a novidade pode sempre ajudar-nos a
entender o caso brasileiro, além de que uma mulher pode engravidar
em qualquer lugar mas os seus direitos o respeito a eles variam de acordo
com o país ou lugar onde você se encontra.
Como
sempre, a decisão de autorizar o aborto em caso de estupro apenas
com a declaração jurada da mulher é um passo importante em direção
ao aborto descriminalizado plenamente. Embora essa decisão ainda não
dê pleno direito a qualquer mulher de decidir sobre manter ou
interromper um processo drástico em seu próprio corpo e sua própria
vida, está posta, neste caso, uma premissa importante que no Brasil,
por exemplo, só vemos contemplada nas reivindicações de movimentos feministas: a de que a justiça e a medicina não podem
e não devem intervir nem na decisão da mulher e nem na
culpabilização da mulher pelo estupro sofrido. A palavra da mulher
formalizada numa declaração jurada em casos de aborto de estupro basta como testemunho da
violência sofrida, e ninguém pode se antepôr a isso, segundo o
caso argentino.
A
nova determinação da justiça também prevê o direito de médicos
e profissionais da saúde que não aceitem, por questões religiosas
ou ideológicas, por exemplo, realizar um aborto numa paciente. A
eles lhes é garantido o direito de negar-se a isso, e muitos
hospitais já estão inclusive divulgando listas de médicos que não
o fazem. Algo meio contraditório e por isso mesmo complicado, pois
de um lado se argumenta em favor do direito de decidir da mulher e de
outro pelo do médico.
Fiquei pensando no caso de localidades pequenas onde exista
apenas um hospital público cujos médicos em sua totalidade se
neguem a realizar abortos. Aí complica, porque se trata da negativa
do Estado por meio de seus agentes a realizar o cumprimento de uma lei e um direito da mulher. Não sei ainda como a nova lei se posicionaria
diante destas situações, e fiquei ainda pensando em alguns embates
similares, por exemplo o de médicos religiosos cuja religião proíbe
seus fiéis de fazer transfusões ou doar seu sangue (esta NÃO é
uma situação hipotética, tais religiões existem e contam com
muitos fiéis no Brasil). O que aconteceria se, no meio de uma
cirurgia num hospital público, o médico adepto de tal religião se
negasse a realizar a transfusão de sangue em um paciente que a
necessite, sob o risco de morte deste, porque transfusões de sangue
são proibidas na religião do médico?
Outro
embate que serve como contrapartida interessante é o caso de
policiais cristãos (agentes do estado assim como muitos médicos)
que matam em serviço. Como se sabe as religiões cristãs têm como
dogma ou preceito básico os dez mandamentos de deus presentes na
bíblia. O quinto desses mandamentos (o mesmo que é utilizado como
base de argumentação contra o aborto e supostamente em defesa da
vida da qual estas religiões e seus fiéis são os porta-vozes) é o
inviolável „Não Matarás“. No mesmo raciocínio, segundo a
bíblia a idéia deste mandamento é complementada pela recomendação
de não agir em legítima defesa: „se te esbofeteiam na face,
oferecerás também a outra“. O fato é que eu nunca vi nenhum
desses policiais que mataram por „exigência da profissão“
(coisa que pra mim não existe, mas que é um artifício muito usado)
serem excomungados ou ainda serem liberados pelo Estado e pela
corporação das funções profissionais que o „obrigariam“ a
tomar decisões drásticas – como a de apertar o gatilho -, em
defesa de um colega, de uma suposta vítima ou ainda de si mesmo ou
de ninguém. Realmente a questão do médico se negar a realizar um
aborto legal é pra se pensar...
Outro
aspecto importante dessa nova decisão na Argentina, é a de que se
os procedimentos são feitos de acordo com a lei, se evita a
revitimização. Sim, porque em primeiro lugar se considera os dados
que mostram que a maioria dos estupros de crianças e de incapazes é
perpetrada por indivíduos do círculo familiar ou de convívio
próximo das vítimas, como vizinhos, padrastos, tios, primos e até
mesmo pais. Considerando a complexidade das constelações familiares
e a problemática das relações em que a vítima está inserida –
muitas vezes sendo exposta à violência sexual de maneira já
prolongada e constante -, pode acontecer que a denúncia do
estuprador provoque represálias deste em relação à vítima ou até
mesmo o seu assassinato imediato, ou seja, a sua revitimização.
Pensando que o direito ao aborto não pode de maneira alguma ser
condicionado a procedimentos que, embora não o objetivem, podem
provocar a revitimização, esta lei não obriga a vítima a oferecer
provas contra seu estuprador e nem provas do estupro, mesmo porque este
pode anteceder o pedido de aborto em muitas semanas.
O
argumento de evitar a revitimização é um dos que eu acho
essenciais para reafirmar e defender o direito ao aborto no Brasil.
Temos uma situação social concreta em que aborto em caso de estupro
comprovado é legalizado, mas que por outro lado mulheres e crianças
vítimas de estupro são submetidas todos os dias a exames de corpo
de delito invasivos muito tempo depois da violência sofrida.
Procedimentos desencorajadores, violência institucional extrema,
medo de represálias, e questionamento de sua integridade física e
moral pelos que deveriam defendê-las. Inúmeras mulheres e crianças
acabam voltando a ser vítimas de estupro e violências maiores
porque além de terem que denunciar seus estupradores não têm
garantia de que serão protegidas pelo estado e menos ainda de que os
abortos serão realizados em tempo hábil. Há de defender-se o
direito ao aborto incondicionado, mas até lá devemos lutar para que
o sistema existente não vitimize duplamente as vítimas de estupro e
condicione o direito conquistado.