sábado, 24 de março de 2012

Série de posts sobre o direito ao corpo, à sexualidade livre e ao aborto


Uiiiii, feliz ano já não tão novo! Tanto tempo sem publicar nada, embora assuntos e vontade não tivessem faltado. Tenho uma lista imensa de posts pela metade, que minhas mudanças de continente e de país nos últimos dois meses e meio me impossibilitaram de terminar, ou me fizeram perder o ânimo, a vontade ou mesmo o time, como foi o caso de diversas blogagens coletivas importantes que perdi, como a do dia internacional das mulheres, organizada pelxs companheirxs do Blogueiras Feministas. Nesse meio tempo uma cirurgia da mamis me obrigou a uma estadia prolongada na casa dos meus pais, em seguida país novo, casa nova, e trabalho, trabalho e mais trabalho. Chega de desculpas, agora quero deslanchar!

E para isso, quero abrir uma série de posts de conteúdo altamente feminista - para os desavisados - e sobre um assunto sério, que está sendo bastante discutido não só no Brasil nesse momento, mas também em diversos lugares do mundo, entre eles os Estados Unidos pré-eleições e a Argentina kirchnerista (onde me encontro): o aborto, e como não poderia deixar de ser, direitos sexuais femininos e direito ao corpo. Nesta série quero tentar contribuir à minha maneira e mesmo que não chegue tão longe com minhas idéias e opiniões para esta discussão que deveria ser generalizada, mas que não é. Não é porque não chega à maioria das pessoas e principalmente às mulheres, mais afetadas pelo assunto, porém imobilizadas pela falta das condições mínimas de informar-se, posicionar-se e ter sua voz ouvida. 

Bem, se você chegou até aqui (e esse blog deveria se chamar "o fim do mundo" ou, "onde o Judas perdeu as botas" ou ainda, "onde o vento faz a curva"...hehehe) espero que opine, me critique, comente, ou que pelo menos saia com uma pergunta na cabeça ou com a vontade de voltar a discutir. Até mais ler!

sábado, 31 de dezembro de 2011

Minha Retrospectiva 2011


Estamos no último dia do ano e esse blog (cuja idéia surgiu em janeiro e começou a ser posta em prática em maio) ainda reflete o meu dilema em ter um blog temático ou ter um blog „diário“. O ano acabou e eu ainda não me decidi, apesar de defender que blogs não podem ser uma mistureba. Acho no entanto que ainda estou me descobrindo, aprendendo não só a usar ferramentas como também me integrando ao mundo dos blogueiros e blogagens, sentindo cualé e me permitindo esse espaço (que pode ser uma zona, mas é meu, tá?!). Bem, deixo pra refletir isso num outro post, que sigo devendo, e com isso explico que hoje vou postar uma retrospectiva 2011 bem pessoal, falando do meu ano.

Comecei o ano „a full“, mesmo porque aqui janeiro é meio de semestre, dia 3 era segunda e eu já tinha aula de manhãzinha. Estava odiando o primeiro semestre do mestrado, frustrada com matérias, professores, colegas. Além disso tinha que me apresentar para os exames de proficiência de língua, e além de serem caríssimos e eu e o Respectivo estarmos fa-li-dos, se eu não aprovasse nenhum dos dois eu seria desligada – pra usar o eufemismo – do curso. Bem, estudando alemão que nem uma idiota, fazendo milhões de trabalhos e apresentando zilhões de seminários na pós, e sob uma super pressão que eu mesma me impunha... O fato mais marcante desse mês foi eu explodindo em prantos na frente dos meus colegas de curso no dia do simulado, e a professora indo atrás de mim pra ver se eu não tinha me enforcado no banheiro, hehehe. Olhando pra trás, vejo como sou exagerada: eu não só conhecia ambas provas porque já tinha feito e aprovado ambas uma vez, como estava muito melhor preparada. He, minha auto-confiança é grande, mas quando falha eu vou te contar... Outro fato importante foi encontrar um companheiro da minha facul do Brasil aqui, e ao comentarmos do passado e do presente eu comecei a refletir sobre muitas coisas. Daí nasceu a primeira chispa de vontade de fazer o blog.

Fevereiro foi o mês das provas de proficiência, tive muitas demonstrações de apoio e companheirismo por parte do Respectivo e algumas demonstrações de amizade muito importantes que queria mencionar: a primeira foi a amiga que fazia Yoga comigo pra me acalmar. A segunda foi da amiga que se encontrou comigo horas e horas antes da prova pra me ajudar a desencanar com a prova de fala. Pro bem geral e sossego da nação eu passei! A essas alturas um dos meus grupos de teatro já estava entrando de férias, e com o outro estávamos preparando um mini espetáculo que apresentamos duas vezes em Março e Abril. Se um dia alguém quiser uma dica de esporte radical eu tenho: faça teatro de improvisação em alemão. Depois disso ninguém mais vai duvidar da sua coragem e superação! Rá! Fora isso Março e Abril foram meses mornos, passei escrevendo trabalhos de faculdade e lamentando que a primeira não ia dar espaço pro Verão tão cedo. Como não deu.

Em Maio já estava me livrando do vazio das férias, semestre recém começado na faculdade, esperanças renascendo quanto ao mestrado, mas não quanto à maioria dos colegas. Desfrutei já com pitadinhas de saudade cada momento em cima da bicicleta indo e voltando da facul ou de qualquer lugar a onde ia. Dói saber que no Brasil a coisa caminha pro sentido inverso: sem carro ninguém pode sonhar em chegar a lado nenhum. Comecei o blog, depois de ter negociado com alguns amigos e amigas um blog coletivo, ou pelo menos em dupla. Percebi que a idéia do blog animava o povo, mas ninguém se sente livre o suficiente pra perder ou se roubar 2 horinhas por mês pra escrever o que quer que seja. Não culpo ninguém. Afinal, a necessidade era minha, e desejo, mais que nada.

Sobrevivi Junho, e pode ser que esteja me esquecendo de algo importante, já que minha agenda está vazia nessas datas, e por tanto, houve coisas tão importantes que eu nem precisei anotar, já que não ia esquecer de jeito nenhum...Estratégia furada essa! Julho foi o mês do prenúncio da ansiedade e confusão que iria marcar todos os próximos meses do ano: fomos à imigração para nos informar das possibilidades – baseadas na minha necessidade real de terminar o mestrado – de renovar meu visto. Desilusão, desilusão, danço eu dança você, na dança da solidão! Ia ser, e foi, bem mais difícil do que o vaticinado. Mas conto essa história outra hora com detalhes, pros que estiverem interessados em saber a furada que é fazer mestrado „nos estrangeiros“ sem bolsa e sem paitrocínio.

Em julho também aconteceu o primeiro festival de Tango Queer de Berlin, fato que me deixou muito empolgada e fez que minha pesquisa tomasse novo fôlego um pouco. Mas nada como as férias de verão europeu, quando todo mundo some, e a minha posterior volta às aulas, pra fuder com a disciplina e com a pesquisa tudo outra vez...Também fiz uns cursos pra refrescar o inglês que, digamos de maneira discreta, não é a língua que mais gosto de falar. Mas os nativos deste país aprendem idiomas muito bem e desde criancinhas, fazem mil intercambios com mil países, têm cursos de línguas baratíssimos ou grátis em cada esquina. Por mais que role a política do „contrate um estrangeiro“ e supondo que ela funcione, como que uma cidadã de classe média baixa do mundo subdesenvolvido e egressada das escolas públicas brasileiras vai competir no mercado de trabalho? Cri cri cri...

E falando nisso, Agosto e Setembro foram marcados por mais entrevistas de trampo sem sucesso. Em Agosto fiz aniversário, e a festinha foi klein aber fein. Viajei com o meu Respectivo e um amigo dele a Praga e voltando com Pitstop em Munique, viagem esta cheia de aventuras e surpresas do início ao fim como vcs podem ler aqui, bem ao estilo „desbravando“ o que a Europa pode oferecer ao turista pobre de marrédesi. Também perdi muito tempo tentando encontrar trabalho e soluções para o prolongamento do tal visto, já tentando fazer com antecedência e evitar apuros. Cheguei a pensar que talvez não valesse a pena tanto esforço pra estudar aqui, e ocupar um lugar que, na boa, é pra um aluno que tenha condições de se manter aqui sem ter que trabalhar (no sentido brasileiro do termo, quer dizer, de verdade). No fim do mês entrei para o coletivo Blogueiras Feministas. Aos poucos vou conquistando meu espacinho por lá. Isso foi nesse momento e continuará sendo uma super fonte de alegrias para mim.

No fim de Setembro e início de Outubro uma viagem com quase tudo pago à Espanha me reacendeu, reativou as nossas forças e ajudou a olharmos os problemas por outros ângulos. A viagem que começou em Madrid, teve seu ápice em Granada e terminou em Berlim, numa reunião bem pouco convencional de membros da família do Respectivo. Pra pendurar na parede da memória! Outubro: a água já tava batendo no queixo, e nada de visto em vista. Tentamos ajuda de alguns amigos, outros se ofereceram pra ajudar mas melhor se não o tivessem feito, outros perguntavam, por perguntar, o quê podiam fazer. Começamos a nos afundar nos cartões, esperando pagamentos de trabalhos que não vinham e promessas que não terminavam de cumprir-se. Voltam as aulas, eu já melhor adaptada e já gostando mais do curso desde o semestre anterior, quando começaram as matérias do meu perfil de especialização (estudos de gênero). Bate a desconfiança de que o visto do Respectivo não ia rolar: marcamos data pra nossa despedida. Ele começa a ficar ansiosinho por nós e por mim, qualidade de vida vai pro saco, noites sem dormir, distúrbios de concentração.

Em Novembro se intensificou a maior pindaíba de que tenho memória, tanto que o respectivo nem quis que comemorássemos seu niver, de tão tristinho que estava. O tal do trampo salvador sai, mas o contrato demorou até meados de dezembro. Dívidas, cartão afundado, clima de despedida, ansiedade pelo visto, incerteza. Acho que os pontos positivos foram os trabalhos que apresentei na facul, que foram elogiados, as conversas que tive com amigos de verdade, tentando me ajudar a todo custo, e um paper super polêmico que escrevi em coautoria, que me rendeu algo muito especial além do reconhecimento acadêmico: que foi ter a chance de trabalhar e pensar num ensaio junto com o amore. Mas claro que nos intervalos do paper a gente discutia as dívidas e os problemas...hehehe.

Dezembro: um turbilhão que eu ainda não processei direito. Saiu o visto, saiu o trabalho, o amore foi-se embora pro novo continente, eu assumi as burocracias e as buchas do casal por aqui, apresentei o paper super polêmico num congresso aqui, tudo misturado e não exatamente nessa ordem. Também tive que apresentar avanços do meu trabalho e infelizmente havia avançado menos do que queria. Passei um dias morando sozinha, curtindo a saudade, a solidão, mas também um espaço gostosinho pra me curtir e me pensar, já meio fora do olho do furacão, como comentei nesse post aqui. Mais perto do Natal ganhei dois companheiros de apê que já eram meus muito amigos, e isso me deixou felicíssima. Junto com eles e um casal de amigos fofos fizemos uma ceia de natal, e parece que vamos conseguir agitar uma mini festinha da Virada aqui em casa também. Na euforia de reviver meu tempos de morar no Crusp e atolada de trabalhos e burocracias sem fim, continuo com concentração zero e já sendo impelida a pensar em minha volta pra „casa“ em poucos meses.

Achei 2011 um ano pesado, no qual vi muitas descobertas sendo afogadas, e minhas forças sendo consumidas por coisas que poderiam ter sido mais simples. Quê dizer? Culpar alguém? Pra quê? Mesmo que possa encontrar culpados e apontar o dedo indicador cem vezes no nariz do culpado, isso não me faz melhor. Sim, cresci e aprendi com tanta cabeçada que demos, eu e o benzinho. Mas algo teria aprendido se tudo tivesse sido diferente. E quem sabe sem me frustrar tanto.

Deixo aos que lerem este post um poema que me inspira há vários anos, e do qual me lembro não só nas Viradas. Espero que curtam e que possa inspirar a outros também. Feliz ano novo!

Final de año
Ni el pormenor simbólico
de reemplazar un tres por un dos
ni esa metáfora baldía
que convoca un lapso que muere y otro que surge
ni el cumplimiento de un proceso astronómico
aturden y socavan
la altiplanicie de esta noche
y nos obligan a esperar
las doce irreparables campanadas.
La causa verdadera
es la sospecha general y borrosa
del enigma del Tiempo;
es el asombro ante el milagro
de que a despecho de infinitos azares,
de que a despecho de que somos
las gotas del río de Heráclito,
perdure algo en nosotros:
inmóvil,
algo que no encontró lo que buscaba.

Jorge Luis Borges



sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

domingo, 18 de dezembro de 2011

A amiga das horas, prima e irmã do tempo


Ando impregnada daquela sarna que rasga de tanto que coça. Tomei banho de esquecimento, tentei picada de um enxame de novidades eufóricas, tentei me distrair pensando no futuro. Mas a saudade, encardida e determinada... Ah, ela não pára de coçar!


quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Solidão e saudade

Depois dos meses de maior pindaíba da história da minha vida, o amor voltou para o novo continente, porque a gente tá pobre mas não acredita em fracasso antes dos 100 anos! ehehe. Há uma semana tenho o apartamento todinho a self-service. Para minsinha só. Fazia tempo que não ficava tantos dias aos cuidados e sob a atenção exclusiva de mim mesma. Desde a época de faculdade, quando meus amigos viajavam pra casa em feriado prolongado e eu sobrava a la "jiló na janta".

Na primeira noite, desmaiei de cansaço para acordar depois de dez minutos. Esperei em vão que se apagassem sozinhas as luzes da cozinha, e que o vento parasse de empurrar o frio para dentro de minha janela, caprichosamente esquecida escancarada por mim mesma. Me restou levantar da cama, por ordem no barraco e depois lamentar com o abajur a falta de sono, embora o cansaço jorrasse aos baldes. No segundo dia resgatei o hábito e a prudência de fechar a porta de casa com chave ao sair: para não esquecer aberto; para não me esquecer pra fora; mas principalmente porque não tem graça provocar tragédias como essas sem ter em quem por a culpa ou pra quem chorar o leite derramado.  

Sempre soube que gosto de ficar sozinha. Começo a desfrutar da solidão arrumando as bagunças, movimentando objetos e dispondo-os à minha maneira, ocupando espaços que estavam a serviço de outros ou da coletividade. Domino a poltrona cativa de Fulano, ocupo a escrivaninha perto da janela do Beltrano, como no prato raso branco preferido do Ciclano. Tomo um banho preguiçoso de banheira, e o despertador racha aos gritos de manhã, sem que ninguém venha me provocar maiores transtornos. 

Os primeiros dias de solidão são realmente ultra produtivos: casa limpa, durmo cedo, como só o suficiente e muita salada, pouca bagunça, estudo e leio muito em relação aos dias anteriores. Parece que a ansiedade ativa a responsabilidade e a produtividade. Lance louco, mas misteriosamente dá tempo pra tudo, e quando chega a noite me pergunto que é que foi que eu esqueci - afinal, que maluco de repente tanta eficiencia...

Lá pelo décimo dia eu volto a mim. Avacalho de novo, já abandono uns pratos na pia, espalho de novo a roupa pela casa, perco tempo com coisas desimportantes, desregulo o sono. Faço sérias DRs na presença implacável das almofadas e cortinas, e tomo de resposta o eco da minha voz, reverberando histérica. Eis que sinto a diferença entre estar sozinha e morar sozinha. E disso eu não gosto. Talvez por não ter tido tempo e dinheiro suficientes para bancar a experiência, talvez porque eu realmente precise de uma dose diária de conflito pra por a vida em equilibrio... 

Venho de uma família de cinco pessoas, que sempre morou em casa pequena, e eu sempre fui a que sempre dividiu quarto, guarda-roupa, bicicleta. Depois e já na universidade, vivi rodeada de muitas pessoas, desde dividindo quarto com mais um e apê com mais três ou quatro, até dividindo quarto com dez pessoas e o alojs com mais 70. Sem mentira! 

Conflitos e desavenças, por hora, à parte, tive sorte de sempre encontrar nos outros um pedacinho de lar. Um dos momentos em que eu mais me sinto em casa, é quando eu chego a noite e tem alguém pra escutar como foi o dia, ou pra contar do trem que quebrou, do bafo do chefe no seu cangote, de uma nova estratégia para conquistar o mundo a partir do buteco da esquina. Nessas épocas tinha até companheiros de insônia, pra passar as madrugadas de inverno enrolados em cobertor e sentados no chão dos corredores, estudando para uma prova, ou simplesmente passando o tempo. 

Terminamos nossos cursos, uns se casaram, outros continuam estudando mas se mudaram de casa, outros foram morar com novos e menos amigos, ou com seus companheiros e em outros lados, como é o meu caso (espero que por tempo determinado e breve!). O imbatível de morar junto agora é chegar e comer comida do amor feita depressinha, feita pra mim com pitadinhas de safadeza e cenourinha ralada. Assistir um filminho, ou nem isso. Comer em silêncio mesmo, dividindo a fome, trocando olhares delatores e sorrisinhos cúmplices, e completar-se de conchinha nem que seja pra ameaçar guerra nuclear em cinco minutos. 

Mas a ausência de uns faz aparecer as lembranças de todos. Em dias como hoje, quando já começa a aproximar-se o décimo dia de solidão, olho para as fotos amassadas de viajar em mala, e escuto os ecos de todas as nossas risadas, de todos os amigos e pessoas com quem compartilhei-me. Sinto o cheiro da pizza cadalora metade frango e metade quatro queijos misturado ao odor-de-verde tão característico dos corredores do bloco F. Estico o pescoço pra ver se observo algum traço, na parede da memória, do nosso monstro da louça suja, de sete cabeças que cobravam direitos de propriedade intelectual. Pergunto quanto tempo faz, quanto tempo levou pra que nós nos tornássemos, cada um dos muitos, uma das metades da única laranja. Não é da data que preciso, ao final.

Pronuncio os palavrões que a gente inventada, quando percebo que os passos na escada passaram reto pela minha porta. Viro em direção à parede amarelo-ocre bicolor:  onde ficava mesmo essa estante, quando nós chegamos aqui? Na confusão de arrumar volta e mudança, me dou conta de que não terminei de pintar os rodapés da sala de branco! O amor não sobrevive a rodapés imundos, diz o contrato da imobiliária. Não faz mal. Bora amanhã comprar tinta de novo, e pintar de branco no branco. Curtir a solidão como quem desenha no rio da memória a vitória das naus, para aqueles que vêem em tudo o que lá não está. Bora acordar! Daqui há pouco já será meia noite, você tem que ir dormir.



sábado, 26 de novembro de 2011

25 de Novembro - Dia Internacional de Combate à Violência contra as Mulheres

Já faz uma semana que estou pensando em quê escrever para este post. Comecei a pesquisar em blogs e na internet sobre postagens dos anos anteriores, comemorações, campanhas realizadas, etc e encontrei informações fantásticas. Diante de textos tão originais com opiniões muitas vezes tão aproximadas da realidade e dos números quase desisti de escrever sobre um assunto tão importante, infelizmente também variado e complexo. Para não chover no molhado e poder contribuir para a reflexão sobre a violência contra a mulher resolvi contar um pouco de como eu – mulher, jovem, estudante universitária, branca, classe média baixa, brasileira - percebo a violência de gênero em meu cotidiano. Como se pode notar a partir dessas características que citei de meu perfil social, não sou ou pelo menos não me classifico como integrante da parcela de mulheres que são o alvo mais agudo da violência, mas acho importante contar algo da minha percepção disso, não só porque ela pode coincidir com a de muitas outras pessoas, mas porque ao romper esses silêncios que enredam nossas vidas cotidianas podemos desnaturalizar nossas atitudes ao ponto de nos descobrirmos não só como vítimas, mas também como perpetradorxs.

Já fui alvo de piadas machistas, desprezo e comentários infelizes, mas até onde me lembro nunca fui ameaçada ou perseguida por ser mulher no ambiente de trabalho nem na universidade. Me lembro de episódios de caras que se sentiram no direito de me assediar porque eu me comportei de maneira gentil e simpática, mas na época sequer pude imaginar que isso era violência de gênero - „afinal, o que mais tem nesse mundo é homem folgado“, pensava. Até uns anos atrás não formulava esse tipo de questão nos termos „de gênero“. Mas algo que sempre tive muito presente, uma percepção da que tenho lembranças que vêm desde os meus dez, onze anos de idade, é a da diferenciação muito clara e reiterada, entre os membros da minha família, entre homens e mulheres, e seus respectivos lugares, obrigações, modos de se comportar, pensar, falar, amar, viver.

Sim, as minhas lembranças e percepções mais tristes da violência de gênero eu associo ao espaço de convivência familiar e aos membros de minha família. Foi lá que eu descobri – ou que me informaram? - muito cedo de que eu era mulher, e de que portanto eu não era homem. De aparentemente tão óbvio parece até bobo. Mas eu não me refiro ao fato de que quem tem vagina não tem pênis. Isso era só o começo de tudo. Mas me refiro ao fato de que para tornar-se mulher ou homem, na minha família, se necessitava caminhar caminhos muitos distintos. Descobri na infância que eu era menina e portanto não podia sair de bicicleta na rua com os primos. Que eu era menina e portanto tinha que lavar a louça dos homens enquanto os meninos sequer recolhiam os pratos da mesa. Que eu não podia ir pescar mas tinha que ajudar a limpar os peixes. Que quem soltava as pipas imensas que meu pai fazia eram meus primos e não eu e minhas irmãs, porque não tem graça soltar pipa com meninas. Que eu tinha que escutar e aceitar calada que dirigir não é da natureza da mulher, mas homens nascem sabendo. Que eu tinha que entender que era para meu próprio bem que eu amargava as noites do fim de semana em casa, porque „os bodes estão soltos então tem que amarrar as cabritas“.

Não sei se por sorte ou por necessidade, me dei conta também muito cedo de que eu não queria nada disso para mim. Por outro lado, não é fácil digerir a violência e seus tentáculos quando ela vem de dentro de sua própria família, e disputa com você as suas origens. Já não vivo com a minha família há oito anos, mas frequentemente me vejo às voltas com situações absurdas de autoritarismo machista. Prova de que ele ainda existe e infelizmente dita o refrão por lá, é que eu só ganhei um certo espaço no „diálogo“ depois de um certo tempo que já estava longe. Com minha mãe isso continua igual a quando eu ainda morava lá: no caso de que ela tenha a razão em uma discussão, palavras de ordem de quem „traz a comida pra dentro de casa“ valem mais do que a de quem „só põe a comida na mesa“. Menosprezo da sua opinião, a „perda da paciência“ justificada por haver sido contrariado ou ainda a ridicularização do ponto de vista dela são infelizmente as estratégias para vencer qualquer negociação – veja só, eu quase que escrevo „vencer um diálogo“!

Pois é. Nesse dia 25 de novembro, dia internacional de combate à violência contra a mulher, não consegui escrever um texto que fosse mais abrangente, ou teórico, ou literário. Tive a impressão de que tudo que tentei escrever acabava impregnado por essa percepção pessoal da violência simbólica e psicológica como a sementinha podre dessa história. Escrevi e publico este texto contaminado de pessoalidade porque acredito que política deve começar em casa, a partir de discussões e conversas cotidianas. Possivelmente muita gente que leia este texto não encontre muito o que aproveitar. Mas quis, mesmo assim, compartilhar desse esforço de romper com o silêncio que encobre a violência de gênero. Esforço este que nesse dia 25 de novembro é coletivo, e que representa mais que nada a imensa vontade que une mulheres dos mais variados tipos acabar de superar a desigualdade.


* Este texto responde à chamada para blogagem coletiva das Blogueiras Feministas #FimDaViolenciaContraMulher: http://blogueirasfeministas.com/2011/11/blogagem-coletiva-fim-da-violencia-contra-a-mulher/

domingo, 13 de novembro de 2011

Recuperar o sentido das coisas – ou do porquê eu estudo

Quando decidi estudar história não tinha muita ideia de como era a profissão do historiador, nem de como era o curso, e nem do que significava fazer pesquisa, ser historiadora no Brasil, e como isso implicava um milhão de outras coisas como políticas acadêmicas nacionais e internacionais, linhas de pesquisa e "linhagens" teóricas, relações de colonialidade, assimetrias de poder entre as distintas academias do mundo e seus respectivos "modos de pensar" esse mesmo mundo, pensar uma sociedade por meio da reflexão sobre seu passado...

Na verdade, julgando hoje a maneira como eu pensava na época, e a desinformação na qual eu estava mergulhada tendo a dizer que escolhi errado o meu curso e a minha profissão. Não porque eu não gosto e não me identifico com o que eu estudei e com o que faço hoje, mas porque eu achava, na época, que historiadores lidam com determinadas questões de uma determinada maneira que eram, na verdade, objetos e métodos de outras ciências, como antropologia ou mesmo sociologia. Lidei com essas perguntas de maneira prática, quase que tirando no palitinho ou nas cartas. Não havendo quem pudesse explicar melhor o que os manuais diziam sobre as diferenças de currículos dos cursos, ou mesmo entre as próprias disciplinas, optei por estudar algo que estivesse incluído no currículo da escola publica, já que isso significava que eu sempre teria onde trabalhar, enquanto que, se tivesse escolhido outro curso, eu não teria nem idéia de onde pedir emprego. Mal sabia eu que, do ponto de vista das ofertas do mercado de trabalho, historiadores, antropólogos e sociólogos estão quase que todos no mesmo barco furado no Brasil...

Além disso, houve também uma outra escolha anterior a essa, que foi a de não estudar artes. Isso era algo que eu queria de maneira febril, porém também silenciosa. Ao mesmo tempo que queria, tinha muito medo de estudar artes, ou melhor dizendo, artes dramáticas. A educação que recebi na minha família, nesse sentido e do ponto de vista dos meus pais, foi bastante eficiente, pois mantendo-me na ignorância das possibilidades profissionais oferecidas pelo curso, conseguiu que eu mesma me impusesse proibições e barreiras, e por fim desistisse, sob a desculpa – hoje eu vejo -, de que não teria como me bancar sozinha. Obviamente estava claro para mim que caso optasse por "essa vida", não seria nem moralmente apoiada pela minha família ("isso é coisa perigosa pra mulheres jovens de família", "atrizes são todas mulheres faladas, porque dizer que é atriz é fachada pra outras coisas", "você não tem olhos azuis, e nem é loira. se contente com fazer teatro na escola, porque você não chegaria a nenhum lugar com isso"...), que simplesmente não concebe dramaturgia como profissão, principalmente para "donzelas" de família inocentes do interior que devem casar-se, ser mães e esposas exemplares, e nunca comprometer o desempenho desses papéis ocupando-se com outras atividades que não contribuam para a realização desse mesmo desempenho.

Continuando... A única certeza que eu tinha sobre tudo isso na época, e que por sorte não foi frustrada e nem destruída, é que os historiadores eram daqueles tipos de pessoas que trabalhavam com questões políticas e sociais, e que se movimentavam em terrenos alagados de engajamento. Eu interpretava isso como uma possibilidade de subverter e reverter coisas que eu ainda não conseguia nomear com todas as letras, mas que já era capaz de identificar e, em alguns casos, sentir na pele. De alguma maneira eu relacionava o potencial de pensar e realizar mudanças como um dos papéis que eu associava às artes, que era com o que eu havia me proibido de sonhar naquele momento, mas também das ciências humanas, a opção restauradora do potencial de transformação que eu queria para minha vida.

Me dei conta logo em seguida do início do curso de história de que já a decisão de estudar ciências humanas é, no Brasil, uma decisão absurdamente política, e engajada. Começando pelo fato de que ninguém fica rico com isso – e essa é uma das "leis" da sociedade ocidental contemporânea: ter sucesso no trabalho, o que significa ganhar muito bem pelo que faz. Mas principalmente no Brasil, onde o silêncio, o esquecimento e a despolitização da memória são as bases dos estandartes dos valores e fatos que separam e legitimam muito bem o abismo entre ricos e pobres, brancos e negros, patrões e empregados, mulheres e homens, homos e heteros, etc etc, a suposta simples decisão de estudar e ensinar história (e nem digo pesquisar!) já se transforma em uma decisão absolutamente transformadora, porque pode implicar, entre milhões de outras coisas, pensar, enxergar, escutar e falar contra a corrente, ou como bem escreveu Walter Benjamin, ter como tarefa "pentear a História a contrapelo” (tese VII).

O que eu queria nesse post era recuperar esse sentido, pra mim mesma, do porquê eu estudei história, mas principalmente do porquê eu continuo estudando ciências humanas, e do porquê estou voltando timidamente a sonhar com estudar artes. Como uma vez me disse Karim Ainouz, o diretor do filme Madame Satã, o mundo precisa de bons médicos, bons dentistas, bons engenheiros, bons advogados, bons astronautas. Mas prescinde de qualquer cineasta, ator, palhaço, malabarista ou sonhador. Eu estendo: o mundo também prescinde de filósofos, cientistas sociais, historiadores. A desgraça da África incomoda a muito pouca gente no mundo, e incomoda menos que as desgraças individuais e cotidianas. Eu me enfiei nas ciências humanas porque em algum momento da vida criei o hábito torto de pensar que posso dominar o mundo com o olhar, e que projetando por meio dele minhas inquietações, sou capaz de deformar a realidade que vejo, nem que seja só um pouquinho. Eu estudo por mim, em nome de uma ilusão antiga, que criei do alto da minha ignorância, de que a partir destes lugares que ocupo e que almejo posso subverter. Mas o cineasta tem razão. O mundo não precisa de nós.